Indústria da superação: a gente é obrigado a ser forte?
De zero a dez, o que me incomoda em nível nove é a ideia cada vez mais disseminada de que qualquer um pode ser e ter tudo o que desejar, bastando se empenhar o suficiente. Com força de vontade se consegue qualquer coisa, inclusive escalar a montanha mais alta do mundo, certo? Errado.
Se algo fica claro desde que somos bebês é que nem tudo é possível, que nem sempre vai ser do jeito que a gente deseja – e nós que tratemos de viver com isso, da melhor maneira possível. A vida é imperfeita e frequentemente insatisfatória.
Veja também
- O fantasma da mudança: quer morar junto, mas não quer sair de sua casinha
- Cuidar é uma delícia: homens e mulheres deveriam saber (e fazer) isso
- Amor incondicional: isso não existe nem em filme
Quando o nosso relacionamento será perfeito? Talvez quando estivermos mortos. Ou quando ele estiver encerrado e pensarmos nele com nostalgia. Enquanto vivo, o relacionamento será difícil e incompleto, como tudo mais ao nosso redor. O amor perfeito não existe. O que tem para hoje é essa massa de emoções contraditórias, a vida em seu esplendor mambembe e frágil.
Quando era menino, eu queria jogar bola como os melhores da rua e da escola. Nunca consegui. Na adolescência, tentei ser valente como uns caras e bem-sucedido com as meninas como outros. Também não deu. Jovem, descobri na faculdade e no trabalho que alguns caras eram mais inteligentes e outros mais talentosos do que eu, e tive de aceitar a realidade.
Sobrevivi, como todos.
Hoje, se tivesse de apontar a atitude mais importante diante da vida, jamais diria perseverança, obstinação, força de vontade, perfeição, essas coisas que a indústria da superação quer nos empurrar todos os dias, como se a vida fosse uma pista de corrida ou uma quadra de basquete.
Dedicação é importante, evidentemente, mas sinto que o essencial no mundo hipercompetitivo de 2020, em que se fala obsessivamente de desempenho, é a capacidade de lidar com as frustrações, de adaptar nossos sentimentos e talentos à realidade, de amar aquilo que nos vem com naturalidade. Precisamos de alguma resignação, não só de obstinação e esperança.
Entendem?
Conhecer nossos próprios desejos é importante, mas entender que eles podem não se realizar também o é, talvez na mesma proporção.
Num mundo horrivelmente consumista, no qual somos convidados a desejar tudo, o tempo todo, sem limites e sem pudores, um mundo em que somos estimulados a trabalhar sem folga e sem direitos para obter bens e prestígio, é urgente aprender a respeitar os limites: do nosso corpo, do nosso temperamento, dos sentimentos dos outros, da vida como ela é ou como poderia ser.
A indústria da superação quer nos convencer de que diante da nossa vontade nada é impossível, mas isso é mentira. O mundo é pródigo em "nãos": não dá, não pode, não tem, não quero, não gosto, não faço, não vem, enfim.
Estou sugerindo que deveríamos estar subjetivamente preparados para lidar com a impossibilidade e a imperfeição, em vez de perseguir cegamente o sucesso, seja lá o que isso significa: queria e tentei, mas não deu certo. E agora? Respira, o mundo não vai acabar.
Ao contrário do que insistem em nos dizer, não somos onipotentes. Temos limites. Nem tudo está ao nosso alcance, nem tudo é possível. Admitir emocionalmente a inviabilidade ou a incapacidade pessoal é uma forma de resistir ao mantra robótico da competição incessante e do ressentimento inevitável, é uma forma de cogitar um mundo emocionalmente melhor não apenas para mim, mas para todos os que nasceram no bairro errado e nem tiveram chance de competir.
Que tal recusar o reino da inveja que nos fazem habitar? Inveja da mulher do outro, do carro do outro, da aparência do outro, da idade do outro. Que tal dar atenção àquelas partes de nós que não encontram eco no mercado, na vida corporativa e no empreendedorismo como forma de ser, esse empreendedorismo que almeja dominar todos os aspectos da nossa subjetividade, que quer nos transformar em pessoas jurídicas, uma legião global e insípida de NÓS S/A?
Prefiro pensar que não somos apenas potenciais vencedores. Somos gente, e gente sofre derrotas, humilhações, injustiças. A indústria do triunfo e da superação quer nos simplificar, nos transformar num produto sem alma mas de grande eficácia. Somos mais que isso, porém. Somos filhos, pais, mães, maridos, amantes e amigos, criaturas complicadas e vulneráveis. Com força de vontade, amor e ajuda conseguiremos muita coisa. Outras não. Talvez faça bem nos reconciliarmos com essa ideia e buscarmos formas de realização menos cruéis com a gente mesmo.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.