Ivan Martins http://ivanmartins.blogosfera.uol.com.br Esta coluna pretende ser um espaço para discutir os sentimentos, as ideias e as circunstâncias que moldam a vida dos casais – e dos aspirantes a casal - no Brasil do século XXI. Bem-vindas e bem-vindos! Wed, 05 Feb 2020 02:00:45 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Amor de morte: você perdoaria quem lhe deu cinco tiros? http://ivanmartins.blogosfera.uol.com.br/2020/02/04/amor-de-morte-voce-perdoaria-quem-lhe-deu-cinco-tiros/ http://ivanmartins.blogosfera.uol.com.br/2020/02/04/amor-de-morte-voce-perdoaria-quem-lhe-deu-cinco-tiros/#respond Wed, 05 Feb 2020 02:00:45 +0000 http://ivanmartins.blogosfera.uol.com.br/?p=321

Qual o limite do seu perdão? (iStock)

A notícia na internet soava inacreditável: mulher beija no tribunal o homem que lhe deu cinco tiros. Aconteceu durante um julgamento na cidade de Venâncio Aires, no interior do Rio Grande do Sul. Diante do olhar incrédulo dos jurados, a vítima pediu licença ao juiz, foi até o réu e deu-lhe um beijo apaixonado. Registrada pelas câmeras, a cena e a história insólita correram mundo.

Como pode?

Em entrevista ao jornal Gazeta do Sul, Micheli Schlosser, de 25 anos, explicou que Lisandro Rafael Posselt, 28, seu namorado, não tivera culpa dos tiros que disparou contra ela em agosto do ano passado – todos pelas costas, todos certeiros. As cinco balas continuam no corpo de Micheli.

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“Brigamos por causa de conversas que eu peguei no celular dele. Eu provoquei muito ele naquele dia. Ameacei que iria denunciá-lo à polícia por estupro. Ele nunca me agrediu antes. Eu não fico com homem que agride”, ela disse ao jornal.

Aos jurados, ela explicou durante o julgamento que deseja que o namoro deles retome de onde parou – nos tiros, quer dizer -, enquanto ele, condenado por tentativa de feminicídio e porte ilegal de arma, cumpre pena de sete anos em regime semiaberto, com tornozeleira eletrônica. O plano dela é se casar com o rapaz.

Como se reage a uma coisa dessas?

Na internet, a jornalista Cynara Menezes questionou a atitude da moça e leitoras e leitores se dividiram. Uma parte, revoltada, disse que é por causa de gente como Micheli que as mulheres continuam a ser maltratadas.

Outra parte saiu em defesa da moça, dizendo que Cynara não tinha o direito de expô-la. Por acaso ela não sabe que as vítimas de relações abusivas são mulheres frágeis, adoentadas, que se colocam emocionalmente ao lado dos seus algozes por serem incapazes de resistir a eles?

O que vocês acham?

Eu acho que as pessoas e suas relações afetivas são mais complicadas do que as nossas opiniões simplistas.

É evidente que a moça está sendo insanamente leniente com o namorado bom de tiro. Um cristão fervoroso talvez entendesse a necessidade de perdoar intimamente o agressor, mas voltar a namorar com ele, e ajudar a salvar sua pele no julgamento com um beijo de novela, isso ultrapassa os limites da autoestima e da autopreservação. Quando o perdão é demais, o santo também desconfia.

Ao mesmo tempo, a moça não parece de forma alguma aterrorizada por seu agressor. Em vez de se portar de forma submissa ou assustada, age como senhora da situação. Na verdade, faz com que o assassino frustrado pareça um joguete em suas mãos, como na cena do beijo. A ideia da Síndrome de Estocolmo – a reação de alguém tão indefeso e assustado que se apaixona por seu algoz para sobreviver – não fica bem nessa história.

Quando Micheli diz que Lisandro é bom sujeito, que não a agredia e que antes dos tiros ela o provocou até que perdesse a cabeça, talvez devêssemos prestar atenção. Ela certamente acredita no que diz.

Já vi mais de uma jovem confundir com amor a perda de controle dos homens. É como se as explosões de violência ou erotismo fossem um tributo a elas. “Ele enlouqueceu porque me ama demais, porque me deseja demais”. Há vaidade e prazer nisso, uma espécie de confirmação por vias tortas do próprio poder de sedução. De achar-se poderosa e irresistível a considerar-se responsável pela reação assassina do parceiro é só um passo, que Micheli parece ter dado sem a menor hesitação: eu sou culpada, não ele.

Outra maneira de olhar os fatos é considerar que o casal de Venâncio Aires vivia uma relação doente, baseada em conflito, gritaria e agressão permanentes. “Era um quadro de ciúme doentio de ambas as partes, e de violência”, disse o promotor Pedro Rui de Fontoura Porto.

Há casais que vivem assim, um mergulhado na loucura do outro. Brigam, se separam, se agridem, se insultam, quebram tudo, voltam. Às vezes os dois são agressivos, às vezes só um deles, mas ambos são sócios na empreitada desastrosa. Se apenas um fosse doente, o outro tentaria ir embora. Quando não vai, quando nem tenta, é porque tem parte na turbulência e nos sentimentos intensos que ela provoca.

Entendem?

Se me perguntassem sobre os tiros e o beijo, eu responderia que machismo (da parte dele) e submissão (da parte dela) não explicam satisfatoriamente a situação. Acho que houve um encontro de personalidades complicadas na formação desse casal.

Que ele tenha chegado ao ponto de disparar cinco vezes contra ela em praça pública, depois de um ano e meio de namoro, e que ela se apresente como verdadeira culpada por esse crime, sugere um caso de loucura a dois – ou a três, se considerarmos que o júri caiu na conversa da moça e deu uma sentença levíssima ao cara, com base no argumento de “forte emoção”. A vida humana anda barata em Venâncio Aires.

PS – Esta coluna encerra a minha colaboração com o Universa. Foi bom estar aqui, desejo boa sorte aos que permanecem. Quem quiser continuar lendo as colunas, elas serão publicadas toda quarta-feira no endereço ivanmartins.net e divulgadas nas minhas redes sociais. Até mais!

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Indústria da superação: a gente é obrigado a ser forte? http://ivanmartins.blogosfera.uol.com.br/2020/01/28/diga-nao-a-industria-da-superacao/ http://ivanmartins.blogosfera.uol.com.br/2020/01/28/diga-nao-a-industria-da-superacao/#respond Wed, 29 Jan 2020 02:00:18 +0000 http://ivanmartins.blogosfera.uol.com.br/?p=307

Superação tem limite, né? (Istock)

 

De zero a dez, o que me incomoda em nível nove é a ideia cada vez mais disseminada de que qualquer um pode ser e ter tudo o que desejar, bastando se empenhar o suficiente. Com força de vontade se consegue qualquer coisa, inclusive escalar a montanha mais alta do mundo, certo? Errado.

Se algo fica claro desde que somos bebês é que nem tudo é possível, que nem sempre vai ser do jeito que a gente deseja – e nós que tratemos de viver com isso, da melhor maneira possível. A vida é imperfeita e frequentemente insatisfatória.

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Quando o nosso relacionamento será perfeito? Talvez quando estivermos mortos. Ou quando ele estiver encerrado e pensarmos nele com nostalgia. Enquanto vivo, o relacionamento será difícil e incompleto, como tudo mais ao nosso redor. O amor perfeito não existe. O que tem para hoje é essa massa de emoções contraditórias, a vida em seu esplendor mambembe e frágil.

Quando era menino, eu queria jogar bola como os melhores da rua e da escola. Nunca consegui. Na adolescência, tentei ser valente como uns caras e bem-sucedido com as meninas como outros. Também não deu. Jovem, descobri na faculdade e no trabalho que alguns caras eram mais inteligentes e outros mais talentosos do que eu, e tive de aceitar a realidade.

Sobrevivi, como todos.

Hoje, se tivesse de apontar a atitude mais importante diante da vida, jamais diria perseverança, obstinação, força de vontade, perfeição, essas coisas que a indústria da superação quer nos empurrar todos os dias, como se a vida fosse uma pista de corrida ou uma quadra de basquete.

Dedicação é importante, evidentemente, mas sinto que o essencial no mundo hipercompetitivo de 2020, em que se fala obsessivamente de desempenho, é a capacidade de lidar com as frustrações, de adaptar nossos sentimentos e talentos à realidade, de amar aquilo que nos vem com naturalidade. Precisamos de alguma resignação, não só de obstinação e esperança.

Entendem?

Conhecer nossos próprios desejos é importante, mas entender que eles podem não se realizar também o é, talvez na mesma proporção.

Num mundo horrivelmente consumista, no qual somos convidados a desejar tudo, o tempo todo, sem limites e sem pudores, um mundo em que somos estimulados a trabalhar sem folga e sem direitos para obter bens e prestígio, é urgente aprender a respeitar os limites: do nosso corpo, do nosso temperamento, dos sentimentos dos outros, da vida como ela é ou como poderia ser.

A indústria da superação quer nos convencer de que diante da nossa vontade nada é impossível, mas isso é mentira. O mundo é pródigo em “nãos”: não dá, não pode, não tem, não quero, não gosto, não faço, não vem, enfim.

Estou sugerindo que deveríamos estar subjetivamente preparados para lidar com a impossibilidade e a imperfeição, em vez de perseguir cegamente o sucesso, seja lá o que isso significa: queria e tentei, mas não deu certo. E agora? Respira, o mundo não vai acabar.

Ao contrário do que insistem em nos dizer, não somos onipotentes. Temos limites. Nem tudo está ao nosso alcance, nem tudo é possível. Admitir emocionalmente a inviabilidade ou a incapacidade pessoal é uma forma de resistir ao mantra robótico da competição incessante e do ressentimento inevitável, é uma forma de cogitar um mundo emocionalmente melhor não apenas para mim, mas para todos os que nasceram no bairro errado e nem tiveram chance de competir.

Que tal recusar o reino da inveja que nos fazem habitar? Inveja da mulher do outro, do carro do outro, da aparência do outro, da idade do outro. Que tal dar atenção àquelas partes de nós que não encontram eco no mercado, na vida corporativa e no empreendedorismo como forma de ser, esse empreendedorismo que almeja dominar todos os aspectos da nossa subjetividade, que quer nos transformar em pessoas jurídicas, uma legião global e insípida de NÓS S/A?

Prefiro pensar que não somos apenas potenciais vencedores. Somos gente, e gente sofre derrotas, humilhações, injustiças. A indústria do triunfo e da superação quer nos simplificar, nos transformar num produto sem alma mas de grande eficácia. Somos mais que isso, porém. Somos filhos, pais, mães, maridos, amantes e amigos, criaturas complicadas e vulneráveis. Com força de vontade, amor e ajuda conseguiremos muita coisa. Outras não. Talvez faça bem nos reconciliarmos com essa ideia e buscarmos formas de realização menos cruéis com a gente mesmo.

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Nem tudo se resolve conversando http://ivanmartins.blogosfera.uol.com.br/2020/01/22/nem-tudo-se-resolve-conversando/ http://ivanmartins.blogosfera.uol.com.br/2020/01/22/nem-tudo-se-resolve-conversando/#respond Wed, 22 Jan 2020 03:01:26 +0000 http://ivanmartins.blogosfera.uol.com.br/?p=294

E quando a conversa não resolve nada? (iStock)

Muita gente acredita que tudo se resolve conversando, dentro e fora dos relacionamentos. Eu discordo. Há situações que as palavras não resolvem. Aquilo que alguém fez ou disse, um sentimento que provocou, pode ser irreversível.

A ideia de que tudo pode ser conversado, perdoado ou entendido parte da ilusão de que somos criaturas racionais, gente que toma decisões lógicas e age de acordo com elas. Mas não somos bem assim. Somos bichos afetivos, emocionais, cujo interior passional é recoberto por uma tinta de sensatez. Por baixo da argumentação coerente ferve a lava dos sentimentos.

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As palavras são o melhor – e às vezes o único –instrumento que temos para comunicar e alterar as nossas emoções. As palavras precisam ser usadas no interior dos relacionamentos, mas muitas vezes elas são insuficientes. As famosas DRs, as discussões de relação, não resolvem todos os conflitos.

Quando alguém faz algo que nos magoa demais, não adianta ficar falando a respeito. A gente pode ser capaz de perdoar ou não. Horas de conversa não mudam os sentimentos e nem os fatos. Às vezes, você até gostaria de deixar de lado, mas não consegue. Calou fundo. Mudou coisas por dentro. Não tem volta. Pode-se começar de novo, mas não do mesmo lugar.

Quem nunca viveu uma situação assim?

As pessoas bem-sucedidas nos relacionamentos são naturalmente cuidadosas. Elas sabem que as palavras não consertam tudo e agem de forma a não ferir ou atropelar os parceiros. Elas prestam atenção no outro, o que não é fácil. A maioria de nós tem olhos só para si mesmo, para seus próprios problemas e sensibilidades. Quem consegue sair de si e olhar atenciosamente para o parceiro ou a parceira tem menos chance de cometer erros imperdoáveis ou – o que é mais frequente – se comportar seguidamente de maneira que entristece ou afasta quem está do lado. O desgaste repetido causa a maior parte das separações.

Muitos não percebem o limite das palavras. Acreditam, secretamente, que todas as diferenças, todos os desapontamentos e desencontros podem ser aparados e resolvidos. Além de serem ingenuamente onipotentes, eles se fiam nos aspectos racionais da relação, ignorando as emoções – conscientes e inconscientes – que influenciam nosso convívio. Palavras criam pontes, mas elas não cruzam todos os abismos.

Não estou falando apenas das consequências de enganar e trair a confiança do parceiro. Isso é um clássico do não retorno, mas não é a única razão para tornar as coisas inviáveis. Os parceiros nos desapontam de formas menos dramáticas, mas igualmente corrosivas: por não fazer o que esperávamos deles, por lhes faltar sensibilidade para os nossos sentimentos, por serem voltados a si mesmos, egoístas. Temos de falar sobre isso, claro, mas adianta? Nem sempre.

Entre os homens, é comum um certo jeito adolescente, egoísta, que faz com que procurem satisfação imediata de seus desejos, indiferentes aos sentimentos dos outros. É uma coisa presente em caras de todas as idades. Se as parceiras falarem com eles sobre isso, poderão ouvir explicações ou negativas (“Não, eu não sou assim. Nada a ver.”), mas, dificilmente, verão mudanças notáveis de comportamento. O buraco do egoísmo infantil é mais embaixo. Alguns casos se resolvem com a passagem do tempo e o advento da tal maturidade. Outros, só com terapia, ou nem assim.

Acontece o mesmo com gente ciumenta. Você pode passar a vida conversando com elas sem conseguir mudar esse sentimento. Com uma boa educação e um sólido conjunto de valores, a pessoa aprende que não pode agredir ou esculhambar quem lhe causa ciúme. Ela aprende a conter suas reações. Mas a suspeita e a raiva continuam lá, assombrando e atrapalhando o convívio. Cada vez que houver motivo (real ou imaginário) de ciúme, haverá crise.

Em casos como esses, talvez seja mais útil observar do que conversar. A pessoa se revela quando age, não quando fala. Prestando atenção ao comportamento do parceiro – ou da parceira – a gente vai percebendo o que se repete, aquilo que vem à tona espontaneamente, de forma recorrente, e que tem pouco a ver com o que a pessoa diz ou pensa sobre si mesma. É desse material que se repete que a pessoa é feita, não de palavras bonitas.

Quer dizer, então, que falar é inútil? Não, não é, mas é bom ter claro que há limites para o que as conversas de casal podem produzir. Elas tocam a compreensão, mas não alteram as marcas profundas, os traços arraigados, o caráter. Para isso é necessária ajuda externa, e nem sempre funciona. Às vezes será preciso aceitar o outro como ele é, ou simplesmente sair andando. Nem tudo pode ser mudado.

Há um certo pessimismo nessa constatação, evidentemente. Aceitar que as palavras não são mágicas significa que alguns impasses emocionais nos relacionamentos podem ser insolúveis. Implica, também, entender que certas coisas, uma vez que tenham sido feitas ou ditas, podem ser definitivas e irremediáveis. Quando a gente enxerga isso, percebe a necessidade de prestar atenção ao outro, de tratar os parceiros com cuidado e os nossos relacionamentos como coisas frágeis. Não dá para sair de todas as crises conversando. O melhor que podemos fazer é evitá-las.

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Qual o segredo dos relacionamentos que duram a vida toda? http://ivanmartins.blogosfera.uol.com.br/2020/01/15/qual-o-segredo-dos-relacionamentos-que-duram-para-sempre/ http://ivanmartins.blogosfera.uol.com.br/2020/01/15/qual-o-segredo-dos-relacionamentos-que-duram-para-sempre/#respond Wed, 15 Jan 2020 03:01:10 +0000 http://ivanmartins.blogosfera.uol.com.br/?p=279

Toda vez que escrevo, como fiz na semana passada, que certas coisas importantes – como relacionamentos e amizades – também acabam, invariavelmente aparece alguém para me explicar, com enorme boa vontade, que, se acabou, não era amor e nem amizade de verdade.

Acho essa afirmação um absurdo.

Quer dizer que todas as relações amorosas que tiveram começo, meio e fim eram falsas? Tudo aquilo que a gente sentiu e viveu, e que não durou para sempre, não passava de ilusão? Se, passados alguns anos, ou alguns meses, alguém deixou de amar ou deixou de ser amado, então o próprio amor era um engodo? É necessário passar a vida ao lado de alguém para ter certeza de que um afeto foi verdadeiro?

Não. Claro que não.

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Muita gente confunde a natureza e a intensidade dos sentimentos com a sua duração, mas é possível amar de forma devastadora por tempo limitado, assim como se pode ter um carinho morno e tranquilo que dure décadas. Sentimentos exacerbados talvez nem combinem com fraldas descartáveis, idas semanais ao supermercado e almoços de família no fim de semana.

Acho que muita gente confunde a qualidade e o vigor dos sentimentos amorosos com as habilidades necessárias para sustentar um relacionamento de longo prazo.

Há gente muito apaixonada, muito passional, que não consegue se relacionar de forma duradoura. A pessoa ama, intensamente, mas é incapaz de executar o minueto de renúncias e doações que faz com que um relacionamento amoroso sobreviva. Não é uma escolha ou um defeito moral. É um limite, uma impossibilidade emocional ou psíquica. Outras pessoas se adaptam sem dificuldade ao convívio, provavelmente porque são menos inquietas.

Há um traço de temperamento  – a estabilidade – que talvez seja mais importante do que qualquer sentimento para explicar a duração dos relacionamentos. Quem tende à estabilidade emocional não tem problemas em se acomodar aos ritmos afetivos dos namoros e casamentos, enquanto os emocionalmente instáveis sofrem muito para ficar num par. Quando duas personalidades estáveis e tranquilas se encontram, é bem mais fácil.

Como todo mundo, também acho bonitos os casais de 30, 40, 50 anos de convivência. Uma parte de mim morre de inveja do Tarcísio Meira e da Glória Menezes, embora eu não saiba os sacrifícios que eles fizeram para permanecer juntos. Gosto de pensar que são pessoas muito amorosas, com uma grande capacidade de tolerância e um certo receio de se aventurar em terras afetivamente estranhas.

Sei também que essas pessoas têm sorte. Achar um parceiro para a vida inteira, num mundo de sentimentos voláteis como o nosso, é como ganhar na loteria. Muitos desejam essa permanência, mas pouquíssimos conseguem.

É fácil dizer, como dizem os moralistas, que as pessoas se separam porque querem, porque são fracas ou sem vergonha. Mas isso é bobagem. A maioria das pessoas  não deseja se separar. Elas simplesmente não conseguem evitar a separação. Não sabem como seguir juntas. Obviamente um relacionamento de longo curso exige princípios e força de vontade, ou afundará na primeira crise. Mas essa disposição sozinha, essa determinação, não mantém um casal unido. Precisa haver um grude inconsciente, uma conexão subjetiva, uma massa espontânea de afeto que mantenha os dois amantes ligados. Nada disso é fruto somente de decisões racionais. Quem acha que pode sustentar um casamento na base apenas de caráter e propósito pode ser vítima de um grande desapontamento.

Para os nossos avós (para as nossas avós, sobretudo) a estabilidade era parte da vida. Não havia opção de encerrar uma relação ruim e começar de novo com outra pessoa. Separação era tabu, algo proibido, e sofria-se muito com isso. Os relacionamentos duravam, fossem bons ou fossem maus, felizes ou infelizes. Muitos, porém, olhando para o passado com olhos de hoje, acreditam que aquela estabilidade forçada era uma forma mais profunda e persistente de amor. Confundem a jaula de um casamento sem saída com a felicidade de um conto de fadas.

Na minha geração, que já não é a dos estoicos, só convivi com dois casais que estão juntos desde a adolescência. Imaginem isso: fazer 60 anos de idade casado com a pessoa que você ama desde o primeiro ano do colégio, desde os 15 anos! Só de pensar nisso me dá vertigem: como seria a minha vida se ela tivesse sido assim?

Outro dia, o marido de um desses casais, um cara doce que eu conheço desde que temos 13 anos, publicou um texto nas redes sociais explicando as dificuldades e as recompensas de seu longo relacionamento. Eu li buscando alguma coisa útil para o meu próprio relacionamento, mas não achei. O que o meu amigo explica – sua maneira de gostar, apoiar, aguentar – é uma fórmula linda e pessoal, como são todas as maneiras de amar. Ao lê-la, entendi como ele se sente em relação à mulher que ele escolheu (e fiquei muito comovido), mas a receita de longevidade amorosa dele não serve para mim. Provavelmente não serve para mais ninguém, porque não há no mundo outro casal como ele e ela.

Tendo partilhado alguns relacionamentos, e presenciado tantos outros, desconfio que algumas pessoas estão mais ou menos inclinadas, por uma questão de personalidade e vocação, a viver esse amor de vida inteira – desde que tenham a sorte de tropeçar no parceiro ou na parceira certa.

Outros viverão a angústia e o deleite de encontrar e perder, de encerrar e recomeçar, de sofrer e gozar os amores que terminam. Não é desonra e nem vergonha, não é defeito, fraqueza, pecado e nem alguma espécie moderna de virtude. É uma forma de ser e de amar diferente da outra, e que também expressa uma circunstância: a de não ter encontrado, até agora, alguém com quem viver para sempre. Até agora, vejam bem. Amanhã tudo pode mudar.

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Amizade é para sempre? Nem sempre http://ivanmartins.blogosfera.uol.com.br/2020/01/08/amizade-e-para-sempre-nem-sempre/ http://ivanmartins.blogosfera.uol.com.br/2020/01/08/amizade-e-para-sempre-nem-sempre/#respond Wed, 08 Jan 2020 07:00:22 +0000 http://ivanmartins.blogosfera.uol.com.br/?p=270

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Entre o Natal e o Ano Novo, almocei com um amigo preocupado com o encolhimento das suas amizades.

Aos 20 anos, ele passava o réveillon na praia com um bando de 30 pessoas. Aos 30 e poucos anos, alugava um sítio com um grupo de 15 festeiros. Na semana passada, tendo ultrapassado os 40, ele iria começar 2020 jantando em companhia da mulher e de meia dúzia de almas queridas.

“O que aconteceu”, ele me pergunta. “Onde foram parar os meus amigos”?

Eles, provavelmente, estão vivendo uma situação semelhante, e se fazendo a mesma pergunta – que não tem resposta óbvia.

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Por que não mantemos as mesmas amizades desde a infância, desde o colégio, desde a faculdade? Por que permitimos que aquele grupo do bairro, da igreja e do trabalho se dispersasse? Por que os amigos se vão, ou nós nos afastamos deles?

Eu não sei.

O que eu sei, com base na minha limitada experiência, é que grupos de amigos repetidamente se desfazem, as relações pessoais se esgarçam e, com o passar do tempo, as reuniões vão ficando menores. Num dado momento a lista dos íntimos começa a caber nos dedos das mãos.

Sei também que não há nada de errado nisso.

A vida é impulsionada por uma força de mudança que não isenta as relações de amizade. Os amigos mudam como muda todo resto, como nós mudamos. Se não fosse assim, meu melhor amigo ainda seria o Walter, parceiro inseparável entre os 13 e os 14 anos, alter ego turbulento da minha adolescência bem-comportada. O que é feito do Walter hoje em dia? Não faço ideia.

Sei, porém, onde está boa parte dos amigos do colégio, da faculdade, do começo da vida profissional. Falo com eles de vez em quando, fico feliz em encontrá-los, mas aquilo que nos mantinha ligados não existe mais. Não há grupo de WhatsApp capaz de recriar os laços que ficaram no passado.

Conheço gente que tenta, ativamente, manter amizades antigas. Promovem festas, fazem encontros, se empenham em telefonar, saber, contar, encontrar. Acho louvável, acho bonito, mas suspeito que a vida tenha uma inércia que se opõe a essa resistência. Quando a enxurrada da mudança nos leva em direção contrária à vida do outro, não adianta amarrar uma corda. Uma hora o vínculo se rompe e as pessoas se afastam. Fica o carinho e uma enorme nostalgia. Viveremos com essa ausência.

Sempre existe, claro, a possibilidade de recusar a mudança e ser adolescente para sempre, imerso no bando barulhento e protetor. É uma opção popular nos dias que correm. A festa não pode parar porque as pessoas não sabem o que fazer com elas mesmas quando se instala o silêncio e sobrevém a lucidez.

Eu entendo.

Todos sentimos a mesma aflição. A ideia de envelhecer é assustadora. A solidão é um buraco escuro e frio. Mas a festa permanente é uma alternativa insustentável. Sempre chega o momento em que a música acaba, todo mundo vai embora e alguém fica sozinho na calçada.

Se existe uma solução para a angústia causada pelo afastamento dos amigos – e eu não sei se existe – ela está em abraçar a transformação. Os tempos mudam, nós mudamos, e as nossas amizades também. Existe um movimento de perda de amigos ao longo da vida, mas existe, também, um movimento de conquista. Uma amiga se mudou para a Espanha, outro se tornou bolsonarista, mas, no lugar deles, outras pessoas estão se aproximando e se tornando essenciais.

Se a gente se mantém emocionalmente viva, inserida no mundo, vai esbarrar constantemente em novos grupos e pessoas. É um resultado quase inevitável de estar integrado ao mundo. A gente conhece, se encanta e se envolve com os outros. A amizade surge como uma espécie de enamoramento. Ninguém sabe direito por que acontece e quanto tempo dura, mas acontece, e dura o tempo que tiver de durar. Desfrutemos.

Foi mais ou menos isso o que eu disse ao meu amigo durante o almoço. Ele não ficou inteiramente satisfeito, mas rimos do assunto. Lembrei a ele que nos conhecíamos há décadas, e que a amizade persistia. Prometemos a nós mesmo que, se a vida permitir, o próximo réveillon será novamente na praia, com um bando enorme e barulhento – todos que ainda for possível resgatar, mesmo que seja uma sólida meia dúzia.

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Não venha, meteoro! Faremos melhor em 2020 http://ivanmartins.blogosfera.uol.com.br/2020/01/01/nao-venha-meteoro-faremos-melhor-em-2020/ http://ivanmartins.blogosfera.uol.com.br/2020/01/01/nao-venha-meteoro-faremos-melhor-em-2020/#respond Wed, 01 Jan 2020 03:01:59 +0000 http://ivanmartins.blogosfera.uol.com.br/?p=241  

No dia em que eu vi a foto do cara com braçadeira de suástica, sentado calmamente num bar de Belo Horizonte, tive vontade de que viesse o meteoro.

Como pode?

Foi o mesmo dia, uma segunda-feira, em que o presidente do Brasil se referiu como “energúmeno” a Paulo Freire, o mais influente educador que o país produziu, o brasileiro mais citado em estudos internacionais, um grande homem, dulcíssimo, humanista, marxista e católico, um sábio venerável.

Como pode?

Nesse dia, juro, deu vontade que o meteoro chegasse rapidinho, para pôr fim a essa degradação moral e ideológica que, infelizmente, não se restringe ao Brasil.

Mas isso tudo me ocorreu num dia de grande desânimo e apreensão, uma droga de segunda-feira. Depois, com o avançar da semana, fui me dando conta –como sempre– de que os ressentidos cheios de ódio, embora sejam muitos e cada vez mais influentes, não são maioria. Nós somos.

Aqueles que sonham com um mundo melhor, que desejam combater a pobreza e a discriminação, aqueles que querem viver numa sociedade fraterna, sem racismo, sem machismo e sem preconceito, com ampla liberdade e diversidade, que acreditam em ciência, cultura e civilização, estes ainda são maioria neste planeta ameaçado.

Prevaleceremos a curto prazo? Não sei. Mas é certo que, na história moderna, os regimes truculentos (com raras exceções) têm tido vida curta.

A luz está sempre acesa no fim do túnel, basta que a gente erga a cabeça e espie.

Agora mesmo, na virada do ano, consigo encontrar motivos para ter esperança, apesar do lixo exasperante que circula nas redes sociais. Se a gente se distanciar desse universo paralelo –do submundo digital da extrema direita, com suas agressões permanentes e suas mentiras–, perceberá que, na vida real, as pessoas são menos virulentas.

Claro, existem trogloditas homofóbicos que atacam gays nas ruas de nossa cidade e machos covardes que espancam “suas” mulheres, assim como há gente que celebra o assassinato de líderes indígenas no Maranhão e faz ironias com a morte de crianças baleadas nas favelas, mas essas pessoas estão fora da curva de normalidade moral do país.

A maioria dos homens e mulheres do Brasil é cordata, empática, generosa. Os monstros vociferantes se concentram no esgoto da internet. Não há por que nos deixar intoxicar por eles ou entrar em disputas verbais com robôs, ainda que de carne e osso. Melhor poupar energia para os embates reais.

No mundo de verdade, as coisas estão difíceis, bem difíceis, mas não são impossíveis. Existe vida cultural, ativismo social, organização política. Alegria coletiva. Carnaval. Nas nossas cidades, em toda parte, as pessoas se reúnem para discutir ideias, pensar alternativas, elaborar planos de mudança e transformação. Escreve-se muito, lê-se muito, debate-se intensamente. Cria-se e publica-se em abundância. Há um número crescente de encontros e reuniões, como é mister em momentos de crise.

Mesmo no Congresso, que nos acostumamos com toda razão a desdenhar, se nota um esforço de resistência contra algumas propostas especialmente ignóbeis do governo. O tal “excludente de ilicitude”, proposto por Jair Bolsonaro e Sergio Moro, que dava à polícia o poder de matar (ainda mais) sem explicações, foi derrubado pelos parlamentares. O filho sem qualidades do presidente tampouco conseguiu virar embaixador, porque houve resistência a esse desmando nepotista no Senado. São pequenas vitórias, mas elas demonstram que há vida na superfície lunar da política oficial do Brasil.

O alarido da extrema direita e suas bizarrices ocupam espaço desproporcional na mídia (afinal, eles estão no poder), mas a sensação de controle e exclusividade que projetam é enganosa. A vida real é rica em manifestações que não são captadas ou transmitidas pelas antenas de televisão. O cotidiano dos homens e mulheres normais produz iniciativas que não cabem no formato mental dos ideólogos de Twitter. Elas formam milhões de pequenas avalanches que, juntas, movem as montanhas.

Isso é o que eu penso: que a resistência ao Grande Retrocesso começou, e ela está acontecendo em toda parte, em qualquer lugar onde as pessoas se reúnam para pensar e conversar livremente, sem tutela e sem pastoreio.

Estivemos alienados por muitos anos, desmobilizados, despolitizados, delegando a satisfação de nossos desejos a homens e mulheres públicos de nossa confiança. Mas eles se deslumbraram, se enganaram e, muitas vezes, nos traíram em nome de seus interesses mesquinhos.

Nos cabe, portanto, arregaçar as mangas e resistir de forma calma e determinada ao atual projeto de destruição biológica e espiritual do Brasil.

Faremos isso enquanto nos ocupamos da confusão pungente da nossa vida privada, que não cessa de nos oferecer motivos para estar feliz no mundo. Mesmo em tempos sombrios, o amor acontece e gera frutos demasiadamente comoventes. Os desencontros também se multiplicam, abrindo a possibilidade de novos recomeços.  Precisamos ainda mais de amor quando cai o crepúsculo. Necessitamos de amizade, de carinho e de compreensão em tempos difíceis.

Teremos isso tudo nos dias vindouros? Eu acredito que sim. Espero que sim.

Em 2020, o grande meteoro redentor passará ao largo do nosso planeta ameaçado. Nós, sete bilhões de humanos singulares, não estamos prontos para entregar os pontos. Faremos melhor no ano que vem!

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O melhor de “Star Wars: a ascensão Skywalker” é a tensão sexual http://ivanmartins.blogosfera.uol.com.br/2019/12/25/o-melhor-de-star-wars-a-ascensao-skywalker-e-a-tensao-sexual/ http://ivanmartins.blogosfera.uol.com.br/2019/12/25/o-melhor-de-star-wars-a-ascensao-skywalker-e-a-tensao-sexual/#respond Wed, 25 Dec 2019 05:36:41 +0000 http://ivanmartins.blogosfera.uol.com.br/?p=252

Tensão sexual entre atores é coisa fabulosa. A gente sente na pele. Sentados no escurinho do cinema, somos fisgados pela atração irresistível que arrasta um personagem (ou seria um ator?), na direção do outro. Ao nos identificarmos com eles, somos carregados pelos hormônios que circulam em cena.

Tem sido assim desde o cinema mudo, e isso ajuda a explicar o sucesso duradouro dos filmes como forma de entretenimento: sexo implícito e identificação. De alguma forma, a gente vive as sensações que se apresentam na tela, na forma de medo, raiva, triunfo ou derrota. Sobretudo desejo.

Não sei como será a bilheteria de “Star Wars: A ascensão Skywalker”, o episódio IX da saga de Guerra nas estrelas, que supostamente é o último. Eu não gostei do filme, embora seja fã de carteirinha da série, mas de uma coisa tenho certeza: nunca houve em toda essa longa narrativa um casal como Daisy Ridley e Adam Driver, ou, se preferirem, Rey e Kylo Ren.

(Pode continuar lendo que não vai ter spoiler).

Desde a primeira vez em que os dois ficam a sós, numa sala de tortura da Primeira Ordem – acontece no Episódio VII, “O despertar da força” – a ligação entre os dois se estabelece de forma intensa e claramente erótica. Ele tenta penetrá-la (mentalmente…) e ela resiste, e passa a penetrar a mente dele. Os dois arfam e grunhem. Ela geme em sofrimento. Tem coisa aí, obviamente.

Nessa cena de tensão e contato – que vai se repetir, de diferentes maneiras, nos dois filmes seguintes – o macho prepotente é confrontado pela garota ingênua e se descobre fascinado pela energia que emana dela. O encantamento é mútuo, claro, mas só pode se exteriorizar como ira e violência. Kylo Ren, afinal, com sua tentativa de seduzi-la para o lado negro, representa algo que Rey precisa conter em si mesma. O que será?

No final desse episódio VII, os dois transformam desejo e atração numa luta espetacular, orgástica, durante a qual ela entra em contato, pela primeira vez, com o poder vulcânico da força. Ele emerge do embate derrotado, com o rosto cortado pelo fio calcinante da espada dela, enquanto ela se descobre intacta e triunfante – os olhos brilhantes, a fronte molhada – em uma nova posição: tendo vencido seu íntimo oponente no combate dos sabres de luz, símbolo viril dos jedis e dos siths, ela agora é um deles, embora mulher e inexperiente.

Vários críticos disseram que essa última trinca de filmes de Star Wars era feminista, mas eu mesmo não tinha me dado conta de quanto isso era verdade até refletir sobre os detalhes. Os homens são desequilibrados do mal (como Kylo Ren) ou tontos desequilibrados do bem (como Finn e Poe Dameron) ou, ainda, tipos hesitantes, cheios de culpas, como Luke Skywalker. Quem segura a onda, quem tem coragem, calma e miolos são as mulheres.

No filme seguinte, o episódio VIII – “Os últimos jedis”– não é muito diferente. Rey vai se tornando cada vez mais poderosa, cada vez mais intuitiva e assertiva em seu domínio da força, enquanto os homens ao seu redor vacilam, esbravejam ou correm de um lado para o outro, salvos ou destruídos por mulheres.

Nesse episódio – o melhor da trilogia, na minha opinião, por ser o mais imaginativo – o desejo sublimado entre Rey e Kylo ganha uma nova fisionomia, familiar a qualquer adolescente apaixonado: a conexão entre os dois “adversários” é tão forte, tão intensa, que eles conseguem se ver, conversar e mesmo se tocar, ainda que estejam em pontos opostos da galáxia.

O casal dispõe de um circuito exclusivo de comunicação melhor do que as redes sociais, mas análogo a elas. O filme gira em torno do envolvimento deles, que ocorre num mundo virtual que apenas os dois habitam. Nele, há troca de segredos e promessas entre os jovens. Adultos inoportunos – como Luke Skywalker – às vezes atrapalham bem na hora em que as coisas estão ficando quentes, como na cena da cabana.

Faz sentido que a heroína pura do filme se envolva com um parricida atormentando como Kylo Ren? Claro, que sim. A moça boazinha que se apaixona pelo delinquente sedutor é um clássico do cinema desde “Acossado”, de Jean-Luc Godard, e na vida real acontece toda hora: a mulher que se acha capaz de mudar o caráter do homem problemático, destruído ou pilantra que ela ama. Quem nunca viu esse filme?

Tudo isso, claro, é impulsionado pela presença física e pelo carisma dos atores. Adam Driver, de 36 anos, é considerado o astro mais talentoso da sua geração, um rosto incomum que produz alta voltagem nas telas.  Daisy Ridley, de 27 anos, foi lançada como atriz pela trilogia final de Star Wars. Sua beleza adolescente e seu olhar puro dão a Rey uma intensidade de Joana D’Arc liderando as tropas da República na redenção mística da galáxia.

O match entre os dois parece tão simples quanto inevitável – ou seria esse o resultado de um roteiro bem escrito e de um trabalho competente de interpretação? Nunca saberemos, e não tem a menor importância. No cinema, como em quase tudo na vida, a impressão que fica é a que vale.

Tendo visto os três últimos filmes – como vi os seis anteriores, desde 1977 – me parece que eles são mais dependentes do erotismo do que os demais. Hans Solo e Leia flertavam e até se beijavam nos primeiros filmes (Episódios IV, V e VI), mas o romance entre eles, além de explícito, era menos sensual, e inteiramente lateral à trama. Agora, o desejo secreto, recusado e óbvio de Rey por Kylo Ren, e vice-versa, constitui o núcleo da narrativa,sem o qual o resto desmorona.

Acho que existe aí algo que nos fala sobre a vida real. Na saga particular de cada um, a trama também costuma girar em torno de encontros e desencontros amorosos. Não somos jedis que cruzam a galáxia e esgrimem sabres de luz, mas o amor (ou a ausência do amor) nos segue para onde quer que vamos e informa a maior parte das nossas decisões, mesmo aquelas que parecem não ter nenhuma conexão sentimental.

A vida comum também costuma ser rica em amores sublimados, em paixões que ganham forma de amizade, carinho ou devoção. Às vezes, ódio e desprezo. Isso acontece desde a sexta série, ou mesmo antes, quando jogávamos bolinhas de papel naquele (ou naquela) coleguinha exasperante de escola.

Neste episódio IX de Star Wars, “A ascensão de Skywalker”, assim como nos dois episódios anteriores, há montes disso: paixão inconsciente deslocada para outras formas de sentir. Na minha opinião, isso constitui a parte mais divertida do filme. Depois de 42 anos acompanhando as idas e vindas da força, assim como as derrotas e vitórias cada vez mais previsíveis dos rebeldes, estou mais interessado em saber se Kylo Ren vai tirar a máscara, deixar de joguinhos histéricos e, finalmente, convidar a jovem Rey para dormir na nave dele. Passou da hora, aliás.

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É possível transar e continuar amigos? http://ivanmartins.blogosfera.uol.com.br/2019/12/18/e-possivel-transar-e-continuar-amigos/ http://ivanmartins.blogosfera.uol.com.br/2019/12/18/e-possivel-transar-e-continuar-amigos/#respond Wed, 18 Dec 2019 03:01:14 +0000 http://ivanmartins.blogosfera.uol.com.br/?p=229

Harry e Sally: amigos, amigos, sexo a parte?

Antigamente, quer dizer, até o fim dos anos 80, se dizia que a amizade entre homens e mulheres era impossível. Lembro de um personagem de filme famoso – o Harry, de “Feitos um para o outro” – explicando que todo homem, cedo ou tarde, tenta transar com as amigas. Harry achava (falando por um monte de homens) que o contato amistoso entre homem e mulher era apenas um preâmbulo hipócrita ao sexo, e que qualquer tentativa de amizade entre eles estaria condenada ao fracasso.

Faz algum tempo que a gente, coletivamente, não pensa mais assim.

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A etiqueta pós-moderna, menos machista, desobrigou os homens de seduzirem todas as mulheres que se aproximem deles, e isso abriu a porta para relações melhores e menos erotizadas entre os sexos. Se o sujeito não está tentando comer a amiga, e ela não está jogando charme para ele, os dois podem desenvolver uma relação mais franca, que favorece o crescimento da amizade. A sedução é um baile de máscaras que não combina com a sinceridade da amizade.

Com essa mudança de códigos, aquele cara que dava em cima das mulheres indiscriminadamente, assim como a moça que tentava encantar todos os homens, vão ficando para trás, como personagens de um mundo caricatural. Hoje em dia, diante desse tipo de comportamento, a gente se pergunta: “O que essa pessoa está tentando esconder com tanta exuberância sexual”?

Se a amizade entre homens e mulheres é possível – e a gente sabe que é – resta, porém, uma questão a resolver: o que se faz com o desejo que às vezes se infiltra nas relações de amizade? Não se trata de compulsão cultural (ou psíquica) a agarrar quem está por perto, mas de uma tensão erótica específica, real, nascida do convívio, da admiração e da intimidade.

Mas, espera aí: como a gente sabe que é interesse erótico de verdade e não alguma espécie de oportunismo físico que move o desejo na direção de quem está do nosso lado, aparentemente disponível?

Um jeito possível de esclarecer a dúvida é este: pense numa outra pessoa no lugar daquela que o atrai. Se você perceber que qualquer amiga (ou amigo) provoca o mesmo tipo de reação sensual em você, então talvez seja carência, e não interesse específico.

Feito esse teste, ou qualquer outro, você resolve que, sim, se trata de interesse verdadeiro, pessoal, dirigido particularmente àquela pessoa que vira e mexe está ao seu lado, cheirosa e sorridente, ou cheirosa e emburrada, pouco importa, e aí, o que se faz?

É possível transar e continuar amigos?

Bom, alguém diria, não há necessidade de continuar amigos. É possível que a amizade vire um romance depois do sexo. Sim, é possível, mas não é certo. Duas pessoas podem emergir apaixonadas de uma transa. Mas pode ser que apenas uma delas fique romântica – e aí a amizade começa a azedar. Pode ser também que o sexo, seja ele bom ou ruim, crie algum tipo de estranhamento, e isso afaste os envolvidos.

Para a maioria das pessoas, tirar a roupa e se deitar com os outras não é uma banalidade. O contato corporal, íntimo, sôfrego, com toda a carga emocional que acarreta, tem o poder de criar e de alterar sentimentos. Há um risco enorme de que as coisas mudem depois de as pessoas ficarem peladas, se tocarem e trocarem fluídos – e nem sempre a mudança é para melhor.

Seria muito prático se todos pudessem transar entre si com naturalidade e sem consequências, mas não é assim que acontece. Quando duas pessoas cruzam a linha do erotismo, algo imperceptível se altera na comunicação e na expectativa delas, de uma forma que torna difícil as coisas voltarem a ser como antes.

Em tese, é perfeitamente possível que essa alteração de percepção leve a uma amizade com sexo, tão densa e tranquila como a anterior, mas eu não tenho notícia disso. É mais comum ver gente enrolada em relações que deixaram de ser fraternais e fracassaram – às vezes dolorosamente – no caminho de se tornar qualquer outra coisa. Naufrágios relacionais.

Tenho amigas que me falam de caras com quem elas transam de vez em quando, numa relação sem compromisso. Os “paus amigos”. Mas, francamente, eles parecem mais paus do que amigos. São amantes eventuais que nada têm em comum com a pessoa com quem elas convivem, riem, se lamentam, ralam ou se embriagam em total confiança.

Entendem?

Conheço caso de gente que transou com amiga – ou amigo – e, ao perceber que o clima ficara surreal, deu um jeito de conversar e fazer com que tudo voltasse a ser (mais ou menos) como antes.

Há também aqueles que se conhecem, transam, se envolvem e desencanam – e então se tornam amigos para o resto da vida, essencialmente celibatários um com o outro.

As amizades têm uma função na nossa vida que não se confunde com a satisfação erótica. O erotismo está ligado ao mundo da paixão e da violência emocional, enquanto a amizade é uma coisa tranquila, acolhedora, segura. O ciúme, esse ente que atormenta os apaixonados, repousa tranquilo entre os amigos. Mas, tão logo você adormece nos braços da sua amiga, ou do seu amigo, o ciúme desperta, e desfaz o equilíbrio que havia no relacionamento.

Talvez seja caretice minha, mas acho que as pessoas deveriam ser cuidadosas com as linhas que separam a amizade dos comportamentos passionais, como o sexo. São universos diferentes e não é fácil transitar entre eles. Quando a gente é muito jovem, ou está muito carente, acha que pode tudo, mas não pode. A vida exige que a gente escolha e renuncie, e isso, estranhamente, dá mais sentido às coisas que decidimos realmente abraçar.

Quem se permite tudo, o tempo inteiro, pode ter dificuldade em diferenciar as coisas importantes das triviais. Fica tudo igual, parte de uma massa de sensações indiferenciadas e – frequentemente – angustiantes.

Salvo exceções, que podem ser percebidas pela intensidade dos sentimentos, e por sua permanência, o que se faz diante do desejo por uma amiga – ou um amigo – é respirar fundo e esperar passar, pudicamente.

Se for difícil renunciar, talvez ajude pensar que aquela pessoa encantadora e querida ao seu lado não será mais a mesma depois do sexo. Ela irá desaparecer. Em seu lugar surgirá alguém emocionalmente desconhecido. Pode ser alguém que você goste ainda mais do que antes. Mas pode ser que não. Quer arriscar?

PS – Se você ainda não viu “Harry e Sally: feitos um para o outro”, arrume um jeito de ver. Talvez seja a melhor comédia romântica de todos os tempos. Juro!

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Bicha, preta e favelada: por que é importante falar de Linn da Quebrada http://ivanmartins.blogosfera.uol.com.br/2019/12/10/bicha-preta-e-favelada-por-que-e-importante-falar-de-linn-da-quebrada/ http://ivanmartins.blogosfera.uol.com.br/2019/12/10/bicha-preta-e-favelada-por-que-e-importante-falar-de-linn-da-quebrada/#respond Wed, 11 Dec 2019 02:00:20 +0000 http://ivanmartins.blogosfera.uol.com.br/?p=213

Se alguém me perguntasse, até sábado passado, quem é Linn da Quebrada, eu responderia com um peremptório “não faço ideia”. O nome remete ao funk e, de funk, tudo o que eu sei é o que vaza de forma indesejada das paredes do meu vizinho.

Mas aconteceu, no sábado, que a sessão do filme que eu queria ver estava esgotada, e assim, sem referências, comprei ingresso e sentei numa sala lotada de “Bixa Travesty”, o documentário de Kiko Goifman e Claudia Priscilla que tem Linna Pereira como protagonista.

Uau!

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Em 10 minutos, estava arrebatado pela inteligência e pelo talento de Linn, uma travesti negra de 29 anos que saiu das favelas da Zona Leste de São Paulo para chacoalhar preconceitos universais.

Sua performance no palco – a voz estridente, o rebolado obsceno, o corpo bonito – devem muito a Ney Matogrosso, ídolo declarado de Linn que faz uma aparição relâmpago nos créditos do filme.

De Caetano Veloso ela empresta a combatividade e a lucidez performática. Linn discursa cantando, recitando, como Caetano fez muitas vezes em defesa de suas ideias. Há uma linha histórica que conecta os dois no interior da MPB, como se ela fosse uma das consequências possíveis da radicalidade estética e política de Caetano.

Não sei se Linn leu Michel Foucault ou Judith Butler, mas as coisas que diz ao longo do filme, e a forma articulada e segura como as diz, fazem lembrar a obra desses pensadores do corpo e da sexualidade. É impressionante. Onde eles chegaram pela teoria, Linn parece ter chegado com a experiência. Repito: é impressionante que alguém tão jovem – e tão desfavorecida – emerja do trauma social brasileiro pensando com tanta clareza e com tanta radicalidade, com tanta originalidade, acerca daquilo que a constitui e que a cerca.

Como vocês perceberam, fiquei impressionado — sobretudo pela coragem dela em buscar seu próprio caminho existencial. Linn inventa uma condição humana para abrigar sua complexidade e a sua singularidade. Enquanto milhões de nós fazemos o esforço diário de pertencer a qualquer custo, de ser aceitos, ela recusa identificações conformistas e vai se construindo em liberdade, como algo paradoxal.

Não foi Simone de Beauvoir quem disse que “não se nasce uma mulher, torna-se uma mulher”? Pois é.

Linn da Quebrada se declara bicha, preta e favelada num país que (cada vez mais) despreza e discrimina tudo isso. Lembrem de Paraisópolis. Se diz travesti, mas recusa (“por enquanto”) o apelo das transformações corporais. “Sou mulher com pinto”, canta. No país da homofobia militante, ela denuncia a violência do macho alfa, aquele que ri das bichas mas procura o sexo furtivo com elas. Isso ele não terá mais, ela garante. “Eu quero o corpo todo, não a sua vara”, declama Linn. “Se quiser ficar comigo, vai ter de enviadecer”.

Que coisa é essa, “enviadecer”, seria sinônimo de feminizar-se?

Aliás, o que é “travestividade”, outro conceito que ela manipula no filme com a naturalidade de quem cria ao vivo uma teoria identitária pessoal e intransferível. “Sou terrorista de gênero”, afirma às gargalhadas, sentada no colo do namorado.

Tudo que vai acima seria material suficiente de assombro e admiração, mas há algo mais. O filme registra a recusa de sua protagonista em se deixar congelar na posição heroica (e tediosa) de guerreira invulnerável.  A mesma pessoa que grita no palco, provocativamente, obscenamente, sussurra logo depois seu desejo de ser percebida “como mulher”. Amada como mulher, eu diria. O documentário contém doses enormes de autossuficiência, mas clama por amor e aceitação em cada fotograma. Linn, afinal, é como nós.

– Tô bonita?

– Tá engraçada, responde a letra amarga do funk da travesti.  Uma mulher, afinal, quer ser admirada quando anda pela rua, e não ser vítima de escárnio.

É surpreendente que o Brasil de 2019, com suas hostes de moralistas cheios de ódio, produza artistas como Linn da Quebrada, capaz de tanto vigor poético, autora de um discurso tão crítico, agente irredutível de uma transformação que começa na aparência dela, na atitude dela, e vai se espalhando pelas ruas escuras e esburacadas da periferia de São Paulo.

Essa transformação dá voz e notoriedade a rebeldes transgressoras, mas também beneficia milhões de seres tímidos cujas fantasias dormem sufocadas no armário hipócrita e violento dos costumes brasileiros. Há uma revolução em curso nas vielas da cidade e o funk atrevido de Linn da Quebrada parece ser uma de suas trilhas sonoras.

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Paraisópolis: como essas mortes podem nos deixar indiferentes? http://ivanmartins.blogosfera.uol.com.br/2019/12/03/paraisopolis-e-o-luto-como-as-mortes-podem-nos-deixar-indiferentes/ http://ivanmartins.blogosfera.uol.com.br/2019/12/03/paraisopolis-e-o-luto-como-as-mortes-podem-nos-deixar-indiferentes/#respond Wed, 04 Dec 2019 02:30:34 +0000 http://ivanmartins.blogosfera.uol.com.br/?p=202

Lalo de Almeida (Folhapress)

Em frente à minha casa mora um rapaz que adora funk. Na mesma noite em que eu me mudei, uma sexta-feira, tive de sair na chuva às três horas da manhã para pedir a ele que abaixasse a música porque, afinal, eram três horas da manhã, né? Depois disso houve mais uma visita-campainha-conversa tarde de noite e, afinal, nos entendemos: se a música está muito alta, mando um WhatsApp para ele, que responde abaixando o volume. Não é o paraíso para nenhum dos dois, mas temos convivido em paz. Nesse ínterim, aprendi até a gostar do garoto. Ele é educado e atencioso, à maneira dele, e me faz lembrar que eu também já tive 18 anos e gostei de dançar até de manhãzinha. Faz tempo isso.

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Para a sorte dele, e para a minha, nós dois moramos num bairro em que os conflitos se resolvem conversando. Eu detesto a ideia de chamar a polícia para tratar de problemas pessoais, mas, ainda que chamasse, tenho certeza que ela abordaria o meu jovem vizinho com respeito: é um rapaz branco, de classe média alta e mora numa casa imponente, numa rua aprazível. Se fosse necessário, o pai dele conversaria elegantemente com os policiais e os faria entender que aquele comportamento inadequado era coisa de jovem rebelde: “Quem nunca fez essas coisas”, perguntaria. E os policiais ririam, felizes com aquele instante de intimidade com o andar de cima.

Em outras partes da cidade, o desfecho de uma situação como essa seria outro. Há bairros em que a polícia chega jogando bombas no meio da festa, batendo impiedosamente, encurralando adolescentes assustados em vielas escuras das quais não podem escapar – e ali eles morrem esmagados como bichos, como se não fossem garotos e garotas cheios de sonhos. Se morassem em Perdizes ou Higienópolis, os nove jovens que morreram em Paraisópolis no domingo (01) estariam vivos, como vivo está, e bem, o meu vizinho que adora funk.

Como se vive e se ama num país em que acontece esse tipo de coisa? Como a gente toma café e vai para o trabalho sabendo que esse crime não será realmente investigado e de forma nenhuma punido? Como a gente respira, a cada par de segundos, tendo consciência de que milhões de pessoas, milhões de pessoas ao nosso redor, aplaudem a morte desses adolescentes, alguns deles quase crianças, como se fosse a eliminação de facínoras perigosos? Como a gente faz, diante do espelho, sabendo que não está fazendo nada, literalmente nada, para reparar essa monstruosidade, para se opor a essa hedionda covardia?

Passados três dias das mortes em Paraisópolis, tenho a impressão de que o Brasil nem piscou diante do massacre. A morte de Gugu Liberato, ocorrida num acidente doméstico em Miami, causou mais comoção. Ele era uma celebridade, afinal, uma pessoa famosa. Os fãs puderam ir à beira do caixão fazer selfies e distribuí-los nas redes sociais. As televisões transmitiram ao vivo. Os jovens mortos de Paraisópolis, em comparação, não eram ninguém, no sentido de que gente pobre e anônima no Brasil não é ninguém, nem cidadão. Quem chora pelas pessoas assassinadas na periferia das grandes cidades? Quem se importa com a dor das famílias delas?

Diante dessa monumental indiferença brasileira, tenho a sensação de que perdemos a coragem de sentir. Amputamos nossos sentimentos para sobreviver. Se nos deixássemos tocar pela dor de todos os mortos e injustiçados, seríamos obrigados a fazer alguma coisa, a reagir, a nos colocar em risco. Melhor, então, não sentir nada. Muito mais seguro nos alienarmos no conforto da nossa vida íntima, cheia de pequenas gratificações. Ao fazer isso, claro, nos tornamos menos que humanos, e deixamos as ruas e a vida pública aos predadores, aos monstros. A qualquer momento eles poderão invadir o nosso espaço protegido e cobrar a parte deles da nossa felicidade. Já aconteceu antes, em outras épocas e lugares.

Talvez no Brasil de 2019 não sejamos mais capazes de luto coletivo. Não existem mais perdas emocionais e afetivas que atinjam a todos, como sociedade. Viramos um bando de indivíduos desamparados, miseravelmente fragmentados, vivendo em bolhas espessas e opacas, cada vez menores. Não temos vínculos verdadeiros com o mundo exterior, logo, não há perdas que nos façam desmoronar. Não há luto digno desse nome. Tudo que perece é rapidamente substituído. Não existe uma ligação profunda que precise ser desfeita aos poucos, e dolorosamente, com quem desapareceu. Gugu morreu, quem é o próximo? Quem eram, afinal, essas pessoas em Paraisópolis?

Nos dizem que o funk do domingo continuou até o amanhecer, mesmo depois das mortes — e não deveria haver surpresa nisso. O país tampouco parou. As autoridades não se incomodaram. A cidade continuou a viver como se nada tivesse acontecido. Cada família chora e enterra seus mortos solitariamente, e é assim que deve ser na modernidade vazia que nos oferecem. Não há sociedade, só famílias. Se não aconteceu com você ou com os seus, não aconteceu. Na barbárie em que vamos nos metendo, não há espaço para a empatia e solidariedade fora dos laços de sangue. O lema do Brasil que escolhemos é simples e direto: “Ema, ema, ema, cada um com seus problema”. A rima pobre virou modo de vida num país que afunda em silêncio. Ou morre pisoteado numa viela escura de Paraisópolis.

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