O sofrimento humaniza os homens, e até algumas mulheres
Está fora de moda dizer essas coisas, mas acredito que um certo grau de sofrimento humaniza as pessoas, sobretudo o sofrimento amoroso, sobretudo quando se trata de homens.
Tenho visto, comovido, mais de um amigo descer do pedestal do próprio pinto (perdoem a rudeza da linguagem) e perceber, pela primeira vez na vida – aos 30 anos, aos 40 anos, às vezes depois do 50 — que amar não é um churrasco de domingo, e que nem toda mulher está sob controle.
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Às vezes o sujeito se apaixona por alguém que o rejeita. Outras vezes, se percebe envolvido com uma parceira que mente, como ele tantas vezes mentiu, ou que discorda frontalmente dele, de uma forma que lhe parece intolerável. Mesmo assim, ele não é capaz de pôr um ponto final na situação e procurar uma relação mais confortável. Por estar envolvido, o cara escolhe ficar, aguentar e sofrer – e essa é uma experiência transformadora.
Freud dizia que o sofrimento humano parte de três fontes: o destino incontrolável e imprevisível, o corpo que envelhece ou adoece e as relações com outras pessoas, estas últimas sendo, para o inventor da psicanálise, a mais importante das três, de onde emergiriam as nossas experiências mais dolorosas.
O que sentimos pelos outros e aquilo que sentem por nós constitui a essência da vida. Mesmo se alguém renunciar ao mundo e se enfiar num buraco sozinho ainda estará em diálogo silencioso e permanente com as pessoas a quem amou, odiou ou temeu.
Não há isolamento verdadeiro para criaturas como nós, nascidas na balbúrdia das emoções humanas. Na mais absoluta solidão ainda estamos acompanhados por nossos anjos e demônios. Pela memória dos outros que nos habitam, quero dizer.
Isso tudo deveria ser óbvio, mas, sem uma dose elevada de sofrimento, sem uma quantidade dolorosa de privação emocional, muita gente não percebe a dependência afetiva que tem dos outros, e nem se dá conta da imensa fragilidade que ela provoca.
Muitos tentam atravessar a existência como se não precisassem de mais ninguém, ou melhor, como se os outros fossem descartáveis, peças bonitas de decoração existencial a serem substituídas quando enjoam ou causam problema. A fila anda, é o que se diz.
Para esses tipos, que eu chamaria de alienados afetivos, a decepção amorosa e o sofrimento que ela causa funcionam como uma espécie de revelação, uma epifania: de repente, não mais que de repente, eles percebem, apavorados, o buraco deixado pela ausência do outro. O pé na bunda age para eles como uma chave de compreensão do universo.
Sim, claro, mas o que haveria de bom nisso? Não seria melhor passar a vida sem ter a vivência terrível de olhar para os próximos 30 minutos (ou 30 anos) da vida e não encontrar neles um raio de luz ou uma gota de esperança? Jura que é preciso tocar o desamparo mais absoluto e o desespero mais assustador, causado pelo abandono, para se humanizar?
Em alguns casos, sim.
Muitas de nossas experiências emocionais universais – nascer, por exemplo, ou ser afastado da mãe, quando bebê – são apavorantes, verdadeiramente terríveis, e continuam vivas dentro de nós, soterradas no fundo da memória para evitar sofrimento.
A gente pode tentar viver até os 90 anos sem ter contato com esses sentimentos, mas seria como morar numa casa com três quartos e nunca abrir a porta de dois deles, apesar dos barulhos estranhos que saem lá de dentro.
Quando a gente vive a incerteza do amor, ou as dores do abandono, as portas dos quartos se abrem e somos levados, sem querer e sem saber, a visitar os velhos sentimentos escondidos. É como se repetíssemos as emoções antigas em outras circunstâncias, por meio de outras pessoas. Não é fácil e não é gostoso, mas agora somos adultos e estamos mais preparados.
A nova experiência nos permite, com alguma sorte, integrar os quartos fechados ao resto da casa e ganhar espaço no interior de nós mesmos. É possível que nos tornamos seres humanos mais tranquilos e mais inteiros.
Comecei falando de homens porque o machismo incentiva comportamentos afetivamente alienados. No interior da cultura masculina é fácil crescer achando que mulheres são objetos de uso e satisfação pessoal, não pessoas de verdade, com quem é bom e necessário se envolver.
Mas é evidente que há mulheres que agem da mesma forma, colecionadoras de corpos que não têm envolvimento real com ninguém. Os homens (ou mulheres) passam por suas vidas sem deixar marcas, até que, com sorte, alguém fica, cava um lugar e tem início uma relação capaz de invadir os porões emocionais.
Quando isso acontece, o outro finalmente ganha existência real. Ele deixa de estar fora – apenas mais um corpo no mundo – e se instala em nós como pessoa particular, como subjetividade. Essa interiorização apaixonada do outro transforma a vida psíquica e a existência. As alegrias ganham outra dimensão, assim como tristezas, ansiedades e as angústias. Com o outro vivo em nós, perdemos o controle da situação. A vida assume o volante, na sua imensa e bem-vinda imprevisibilidade.
Esse é o sofrimento que humaniza. Numa outra quarta-feira – prometo! – eu escrevo sobre a alegria e a felicidade que têm o mesmo efeito, e que doem menos.
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