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É possível transar e continuar amigos?

Ivan Martins

18/12/2019 00h01

Harry e Sally: amigos, amigos, sexo a parte?

Antigamente, quer dizer, até o fim dos anos 80, se dizia que a amizade entre homens e mulheres era impossível. Lembro de um personagem de filme famoso – o Harry, de "Feitos um para o outro" – explicando que todo homem, cedo ou tarde, tenta transar com as amigas. Harry achava (falando por um monte de homens) que o contato amistoso entre homem e mulher era apenas um preâmbulo hipócrita ao sexo, e que qualquer tentativa de amizade entre eles estaria condenada ao fracasso.

Faz algum tempo que a gente, coletivamente, não pensa mais assim.

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A etiqueta pós-moderna, menos machista, desobrigou os homens de seduzirem todas as mulheres que se aproximem deles, e isso abriu a porta para relações melhores e menos erotizadas entre os sexos. Se o sujeito não está tentando comer a amiga, e ela não está jogando charme para ele, os dois podem desenvolver uma relação mais franca, que favorece o crescimento da amizade. A sedução é um baile de máscaras que não combina com a sinceridade da amizade.

Com essa mudança de códigos, aquele cara que dava em cima das mulheres indiscriminadamente, assim como a moça que tentava encantar todos os homens, vão ficando para trás, como personagens de um mundo caricatural. Hoje em dia, diante desse tipo de comportamento, a gente se pergunta: "O que essa pessoa está tentando esconder com tanta exuberância sexual"?

Se a amizade entre homens e mulheres é possível – e a gente sabe que é – resta, porém, uma questão a resolver: o que se faz com o desejo que às vezes se infiltra nas relações de amizade? Não se trata de compulsão cultural (ou psíquica) a agarrar quem está por perto, mas de uma tensão erótica específica, real, nascida do convívio, da admiração e da intimidade.

Mas, espera aí: como a gente sabe que é interesse erótico de verdade e não alguma espécie de oportunismo físico que move o desejo na direção de quem está do nosso lado, aparentemente disponível?

Um jeito possível de esclarecer a dúvida é este: pense numa outra pessoa no lugar daquela que o atrai. Se você perceber que qualquer amiga (ou amigo) provoca o mesmo tipo de reação sensual em você, então talvez seja carência, e não interesse específico.

Feito esse teste, ou qualquer outro, você resolve que, sim, se trata de interesse verdadeiro, pessoal, dirigido particularmente àquela pessoa que vira e mexe está ao seu lado, cheirosa e sorridente, ou cheirosa e emburrada, pouco importa, e aí, o que se faz?

É possível transar e continuar amigos?

Bom, alguém diria, não há necessidade de continuar amigos. É possível que a amizade vire um romance depois do sexo. Sim, é possível, mas não é certo. Duas pessoas podem emergir apaixonadas de uma transa. Mas pode ser que apenas uma delas fique romântica – e aí a amizade começa a azedar. Pode ser também que o sexo, seja ele bom ou ruim, crie algum tipo de estranhamento, e isso afaste os envolvidos.

Para a maioria das pessoas, tirar a roupa e se deitar com os outras não é uma banalidade. O contato corporal, íntimo, sôfrego, com toda a carga emocional que acarreta, tem o poder de criar e de alterar sentimentos. Há um risco enorme de que as coisas mudem depois de as pessoas ficarem peladas, se tocarem e trocarem fluídos – e nem sempre a mudança é para melhor.

Seria muito prático se todos pudessem transar entre si com naturalidade e sem consequências, mas não é assim que acontece. Quando duas pessoas cruzam a linha do erotismo, algo imperceptível se altera na comunicação e na expectativa delas, de uma forma que torna difícil as coisas voltarem a ser como antes.

Em tese, é perfeitamente possível que essa alteração de percepção leve a uma amizade com sexo, tão densa e tranquila como a anterior, mas eu não tenho notícia disso. É mais comum ver gente enrolada em relações que deixaram de ser fraternais e fracassaram – às vezes dolorosamente – no caminho de se tornar qualquer outra coisa. Naufrágios relacionais.

Tenho amigas que me falam de caras com quem elas transam de vez em quando, numa relação sem compromisso. Os "paus amigos". Mas, francamente, eles parecem mais paus do que amigos. São amantes eventuais que nada têm em comum com a pessoa com quem elas convivem, riem, se lamentam, ralam ou se embriagam em total confiança.

Entendem?

Conheço caso de gente que transou com amiga – ou amigo – e, ao perceber que o clima ficara surreal, deu um jeito de conversar e fazer com que tudo voltasse a ser (mais ou menos) como antes.

Há também aqueles que se conhecem, transam, se envolvem e desencanam – e então se tornam amigos para o resto da vida, essencialmente celibatários um com o outro.

As amizades têm uma função na nossa vida que não se confunde com a satisfação erótica. O erotismo está ligado ao mundo da paixão e da violência emocional, enquanto a amizade é uma coisa tranquila, acolhedora, segura. O ciúme, esse ente que atormenta os apaixonados, repousa tranquilo entre os amigos. Mas, tão logo você adormece nos braços da sua amiga, ou do seu amigo, o ciúme desperta, e desfaz o equilíbrio que havia no relacionamento.

Talvez seja caretice minha, mas acho que as pessoas deveriam ser cuidadosas com as linhas que separam a amizade dos comportamentos passionais, como o sexo. São universos diferentes e não é fácil transitar entre eles. Quando a gente é muito jovem, ou está muito carente, acha que pode tudo, mas não pode. A vida exige que a gente escolha e renuncie, e isso, estranhamente, dá mais sentido às coisas que decidimos realmente abraçar.

Quem se permite tudo, o tempo inteiro, pode ter dificuldade em diferenciar as coisas importantes das triviais. Fica tudo igual, parte de uma massa de sensações indiferenciadas e – frequentemente – angustiantes.

Salvo exceções, que podem ser percebidas pela intensidade dos sentimentos, e por sua permanência, o que se faz diante do desejo por uma amiga – ou um amigo – é respirar fundo e esperar passar, pudicamente.

Se for difícil renunciar, talvez ajude pensar que aquela pessoa encantadora e querida ao seu lado não será mais a mesma depois do sexo. Ela irá desaparecer. Em seu lugar surgirá alguém emocionalmente desconhecido. Pode ser alguém que você goste ainda mais do que antes. Mas pode ser que não. Quer arriscar?

PS – Se você ainda não viu "Harry e Sally: feitos um para o outro", arrume um jeito de ver. Talvez seja a melhor comédia romântica de todos os tempos. Juro!

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Sobre o Autor

Ivan Martins é psicanalista, jornalista e autor dos livros “Alguém especial” e “Um amor depois do outro”. Irmão mais novo numa família de mulheres, aprendeu muito cedo a fazer xixi erguendo a tampa da privada, e acha que isso lhe fez bem. Escreve sobre relacionamentos desde 2009, tentando entender o que faz do apaixonamento algo tão central à vida humana.

Sobre o Blog

Esta coluna pretende ser um espaço para discutir os sentimentos, as ideias e as circunstâncias que moldam a vida dos casais – e dos aspirantes a casal - no Brasil do século XXI. Bem-vindas e bem-vindos!

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