A vida acontece ali, onde a gente não tem controle
Meu corretor de seguros é um homem prático. Ele apoia que eu corra todos os riscos, desde que deixe a família amparada por uma gorda indenização em caso de acidente.
O que o corretor não sabe é que os riscos que afligem a mim e a milhões de outros não se referem à existência física. Eles incidem sobre a capacidade de ser feliz. Dizem respeito aos sentimentos. Se referem ao futuro e aos sonhos secretos que cada um de nós carrega.
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Para isso não há apólice de seguro.
Recomendo, a esse respeito, que se veja o filme dinamarquês "Rainha de copas". É uma história extraordinária e não pretendo estragá-la com spoilers. Basta saber que o filme mostra uma família em que a mãe se deixa conduzir radicalmente por seus desejos.
O resultado é chocante, mas aponta, metaforicamente, para a situação existencial em que todos nos encontramos: tomamos decisões essenciais com base em sensações, pulsões e sentimentos vertiginosos. Nossa vida é dirigida pela subjetividade de uma forma que nada tem a ver com o mundo racional. Somos animais emocionais tentando agir de forma lógica. Às vezes nos ferramos, outras vezes ferramos os outros. Com sorte, dá tudo certo.
Não há cálculo ou antecipação que nos proteja do futuro.
Se a gente ficar em casa, escondida atrás do computador, nada vai nos machucar (muito) e ninguém vai nos expor ou nos humilhar (muito), mas tampouco vai acontecer qualquer coisa deliciosamente memorável.
É preciso ir à rua e se expor ao contato da carne e dos ossos dos outros para que o acaso lance dados capazes de mudar a nossa sorte.
Mesmo quando isso acontece e o amor nos surpreende, ainda é preciso ter coragem. Uma paixão requer decisões difíceis e urgentes. Ela exige que se abra mão de algo agora, sem certeza sobre o que virá depois. Mesmo estando apaixonados, acordaremos no meio da noite com o coração aos pulos, temerosos em relação ao futuro e aos planos que fizemos a dois. Não há garantias, sussurra o oráculo da noite. Não há garantias.
Ainda assim, é essencial não fugir de tudo que provoca medo e incerteza. A vida parece acontecer ali, onde não temos controle. O inesperado tem o dom de nos revelar a nós mesmos, mas para isso será necessário caminhar na beira de um precipício, sentindo no rosto o vento que assusta e inebria.
Entendem?
De vez em quando, teremos de tomar decisões morais, como faz a mulher do filme. Uma porta se abrirá à direita, com uma oferta de carinho, e diremos não. Outra se abrirá à esquerda, com um sorriso travesso, e recusaremos. Declinaremos daquilo que nos oferecem e mesmo daquilo que desejaríamos porque é a coisa certa a fazer. Há limites, afinal, ao que podemos.
Houve um momento, no passado, em que nossos pais tiveram de aprender a ser livres, porque haviam crescido sob coação e repressão. Não sabiam vivenciar seus desejos, e disso resultava um corpo e um cotidiano mais tristes do que poderiam ser. Agora é o contrário. Todo mundo pode tudo, e milhões não sabem o que querem. Talvez precisem aprender a dizer não a si mesmos para entender o que faz falta — para descobrir a forma do seu desejo, aquele que se manifesta apenas na ausência.
Enquanto isso, prosseguiremos atabalhoadamente entre o medo e a culpa, entre a atração do desconhecido e a segurança do que é previsível. Tentaremos nos esconder no familiar e descobriremos, pasmados, que ele também é estranho, esquisito e que tampouco oferece garantias. Suspiraremos livres e amedrontados, mas lúcidos.
O corretor de seguros ligará no meio da manhã, oferecendo todas as salvaguardas, e nos riremos dele, com carinho: "Vamos fazer o seguro do carro, Oscar. O resto ninguém sabe, e é melhor nem saber".
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