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Ivan Martins

Mulheres fálicas (ou vúlvicas) -- por que tantos homens têm medo delas?

Ivan Martins

18/09/2019 00h01

 

O quadro de Gustave Coubert, "A Origem da Vida", no d'Orsay, em Paris (Reprodução)

No escritório em que trabalhava minha advogada, havia uma sócia que gostava de expressar fisicamente o seu poder. Ela se esparramava na cadeira de pernas muito abertas, durante as reuniões, no que parecia uma reprodução vestida do quadro "A origem da vida", de Gustave Coubert. Era uma espécie de desafio aos homens e mulheres à sua volta.

"Ainda bem que ela usava calças, e não saias", diz, escandalizada, a minha defensora, que vem de uma família de quatrocentonas educadas em francês e achava o comportamento da ex-chefe para lá de inadequado. "Não basta ser fálica, tem de ser vulgar"?

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Duas coisas me ocorreram enquanto ouvia essa história.

A primeira, óbvia, é que muita gente ainda se incomoda com mulheres de temperamento forte, sobretudo se elas fizerem questão de exibi-lo publicamente.

A segunda é que o adjetivo "fálica", que se refere exclusivamente a mulheres, talvez pudesse ser trocado, sem prejuízo, por algo menos ligado à anatomia masculina.

Que tal mulheres vúlvicas?

Mulher fálica quer dizer, originalmente, uma mulher que "se acha completa". Isso significa, em dialeto freudiano, que ela não sente a falta inconsciente de um pênis, e, consequentemente, não acha que vale menos do que os homens que o tem – nem anda desesperada atrás deles para que lhe deem um bebê, equivalente, na linguagem do inconsciente, a um pênis simbólico, um falo.

Mesmo que você não queira nada com Freud, e use "mulher fálica" como sinônimo de mulher forte e boa de briga – como todo mundo faz – o termo está carregado de conteúdo do século retrasado. Ele sugere que uma mulher com certos atributos de caráter é como um homem, uma criatura com pinto. Parece mais um insulto do que um cumprimento.

Vulva, ao contrário, é palavra eminentemente feminina. Já era usada no latim dos romanos e tem um significado poético: "porta do ventre". Com uma sonoridade maravilhosa, descreve a parte externa dos órgãos genitais femininos – a elevação óssea, os pelos e os lábios vaginais. Chamar uma mulher de vúlvica reforçaria sua feminilidade e sua anatomia, em vez de masculinizá-la.

Em tempos de renovação de costumes de vocabulário, fica a sugestão.

Mas, qualquer que seja a palavra — vúlvica ou fálica — resta o fato de que esse tipo de mulher insubmissa ainda enfrenta resistências em nossa sociedade, sobretudo no trato íntimo com os homens.

Muitos caras ficam mais confortáveis ao lado de uma moça dócil, cujo temperamento não ameace o lugar social e os sentimentos deles.

Mulheres que mandam, questionam e disputam podem ser inquietantes. É fácil admirá-las de longe, mas, de perto, colocam um desafio emocional que certos homens, embora seguros em outros terrenos, simplesmente não encaram.

Ainda que o sujeito se ache feminista, na hora de escolher uma parceira é comum que se incline por personalidades menos conflitivas.

Mulher brava dá trabalho – é o que se diz, meio brincando, meio falando sério, na mesa do bar, da mesma forma que já ouvi mulheres dizendo que homem bonito dá trabalho.

Estamos no terreno da cultura conservadora e do preconceito, claro, mas estamos também no território do psiquismo inconsciente, aquilo que fazemos e sentimos antes mesmo de pensar. Escolher os nossos parceiros e parceiras cai nessa categoria.

Quase todo mundo detesta ser podado, corrigido ou criticado. Castrado, em gíria psicanalista. Ninguém gosta, mas, para os homens, parece ser particularmente intolerável se a castração vem de uma mulher.

Uma namorada que se comporte de maneira independente, que critique o sujeito e dispute seus pontos de vista, pode fazer muitos caras se sentirem pequenos frente aos outros homens e a si mesmos. Por isso eles saem correndo. Por machismo, mas não só.

As pessoas são frágeis, e os homens, por trás da máscara social da agressividade, podem ser ainda mais vulneráveis do que as mulheres. Verdadeiras crianças. A autoestima de muitos deles depende de um tipo particular de anabolizante afetivo – a admiração incondicional e a sensação de superioridade intelectual e moral em relação às parceiras. Diante de uma mulher que não sirva de escada para o ego deles, entram em pânico.

Imagino que muitas mulheres estão sujeitas a mecanismos sociais e psíquicos semelhantes, com sinal invertido, mas elas parecem ser mais flexíveis na hora de buscar companhia. Se todas quisessem apenas homens seguros, independentes e bem-sucedidos, estariam sozinhas. O que tem para hoje no mundo real não é bem isso.

Ainda bem que estamos (ou estávamos…) coletivamente engajados em processos de libertação pessoal e destruição de estereótipos, lutando para tornar o mundo um lugar mais amigável para todo tipo de personalidade, independente do gênero.

Os homens vão – lentamente — aprendendo a amar mulheres com mais personalidade do que eles, sem se sentirem Bentinhos inferiorizados diante de indomáveis Capitus, enquanto as mulheres vão tirando seus temperamentos dominantes do armário, em vez de escondê-los atrás de fachadas opressivas e antiquadas de mocinhas sorridentes.

A boa notícia é que todos podem ser escolhidos e amados, inclusive as mulheres vúlvicas e os homens frágeis. Como dizia aquela faixa imortal no carnaval do Rio de Janeiro, se organizar direitinho, todo mundo transa. Transa, acasala e reproduz, se for o caso.

Sobre o Autor

Ivan Martins é psicanalista, jornalista e autor dos livros “Alguém especial” e “Um amor depois do outro”. Irmão mais novo numa família de mulheres, aprendeu muito cedo a fazer xixi erguendo a tampa da privada, e acha que isso lhe fez bem. Escreve sobre relacionamentos desde 2009, tentando entender o que faz do apaixonamento algo tão central à vida humana.

Sobre o Blog

Esta coluna pretende ser um espaço para discutir os sentimentos, as ideias e as circunstâncias que moldam a vida dos casais – e dos aspirantes a casal - no Brasil do século XXI. Bem-vindas e bem-vindos!

Ivan Martins